Há muito tempo, Madalena é uma personagem que desperta as
mais variadas questões de fé no interior do pensamento cristão. Em tempos
medievais, ela poderia representar a mulher como um ser, cheio de pecados e que
deveria se apoiar na fé para tentar se firmar contra os instintos de sua
condição natural. Recentemente, a popularização dos textos apócrifos (não
reconhecidos oficialmente) a coloca sob a perspectiva de uma companheira de
Cristo que fora essencial para a disseminação do cristianismo.
Ao contrário das várias outras Marias que aparecem na
Bíblia, Madalena não tem seu nome vinculado a um marido ou pai. Contudo, o seu
sobrenome pode também remeter à prospera cidade comercial de Migdal, onde ela
supostamente teria nascido. Ainda hoje é possível encontrar um antigo letreiro
nas ruínas dessa cidade que descreve essa enigmática mulher como uma serva de
Cristo.
Paralelamente, o termo “Madalena” significa “torre” em
aramaico. Em termos simbólicos, a torre é um lugar privilegiado, do qual se
pode ter uma visão mais ampla das coisas. Coincidentemente, ela é a personagem
da narrativa bíblica que percebe inicialmente que a sepultura de Cristo estava
vazia ao terceiro dia. Em certa medida, essa primeira percepção salienta toda
uma discussão que pretende circunscrever qual o papel dela na história do
cristianismo.
Na coleção oficial dos livros bíblicos ela expõe um ideal de
fragilidade e arrependimento, ao ser vinculada à imagem de uma prostituta que
se arrepende da sua vida pregressa para seguir Jesus. Em seu primeiro encontro
com o Messias, ela se livra de sete demônios que ocupavam seu corpo. Observando
a recorrência do número sete, podemos ver que a sua salvação aglomerava o fim
de uma obra (como o tempo de criação do mundo) e a libertação de todos os
pecados (os sete pecados capitais).
Mais que uma humana arrependida, ela se coloca como uma
mulher completamente redimida e livre de qualquer espécie de pecado. Contudo,
se existia a possibilidade dessa interpretação ter sido consolidada, ela acabou
desaparecendo, pois o papa Gregório Magno (540 - 604) e os textos da Inquisição
tiveram a função de colocá-la na vacilante posição de uma mulher que caminhou
entre os tênues limites da salvação e do pecado.
Após a ascensão de Cristo, a imagem de Maria Madalena
desaparece como a de uma mulher que não mais teria utilidade. Contudo, em uma
passagem no livro de Romanos, o apóstolo Paulo salienta que, entre várias
pregadoras do cristianismo, Maria teria feito “muito por vós”. Mesmo não
especificando que Maria seria essa, vale lembrar que Madalena teria grandes
possibilidades de atuar como pregadora na condição de mulher livre do
matrimônio e nascida em uma movimentada cidade comercial.
Por meio desses indícios, a suposta veracidade dos textos
apócrifos – especialmente do Evangelho de Felipe – ganham uma proporção
incendiária. A dimensão de uma mulher livre e independente se potencializa com
a figura da mais próxima seguidora de Cristo, que teria por ela um amor de
dimensões carnal e espiritual. Apesar de polêmica e ativadora de várias
interpretações atraentes, os indícios históricos não são suficientes para que
ela seja firmada como a “esposa de Cristo”.
Devemos salientar que os textos apócrifos que sugerem o
contato íntimo entre Cristo e Madalena também podem estar fazendo uma
construção simbólica. As manifestações do corpo são comumente utilizadas como
alegorias que exprimem a consumação de uma experiência espiritual superior. A
própria descrição bíblica que relata que Jesus suou sangue pode, por exemplo,
representar a agitação do Messias ao reconhecer a proximidade de seu destino no
mundo.
Mediante a precariedade de um veredicto, vemos que a
fragmentação de Madalena em outras imagens expõe a vivacidade que a experiência
religiosa pode ter em nosso cotidiano. De um lado, a construção de uma Maria
Madalena mais positiva reforça o valor cristão que há muito tempo salienta que
“os últimos serão os primeiros”. Por outro, essa mesma imagem pode saciar as
questões de um tempo presente, em que as mulheres ganham outro lugar na sociedade
e a autoridade clerical já não é mais a mesma.
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